1º Colóquio sobre HUMANIDADES MÉDICAS/FAMED-UFC/UNIFOR

Sábado, 26 de outubro/2013, das 8h30 às 15h30
Local: Auditório da SOCEP (Sociedade Cearense de Pediatria. Rua Maria Tomásia, 701. Aldeota. Fone: 3261-5849)
O I Colóquio sobre Humanidades Médicas é um evento organizado pelo Grupo HumanAmigos de Humanidades Médicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará em parceria com a Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Participam também da iniciativa: o Núcleo de Ensino, Assistência e Pesquisa da Infância do Departamento de Saúde Materno-Infantil-FAMED/UFC; o Projeto de Vivência da Relação Médico-Paciente (PROVIMP); o Núcleo de Desenvolvimento da Educação Médica (NUDEM); Instituto da Primeira Infância (IPREDE) e o Núcleo de Tecnologias e Educação a Distância em Saúde (NUTEDS).
Localize-se!

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Uma visão acerca da linguagem e seu papel na relação médico-paciente, por Henrique Sá

Uma visão acerca da linguagem e seu papel na relação médico-paciente 
Henrique Sá, Curso de Medicina, Universidade de Fortaleza

Nem todos os pacientes podem ser salvos, mas suas condições podem ser aliviadas pela forma como o médico responde a eles [os pacientes]… Ao aprender a falar para os seus pacientes, o médico fala a si próprio, significando sua prática, devolvendo a ela a paixão dos primeiros momentos. 
Broyard, 1992. 

Quando sofremos uma injúria ou adoecemos, tentamos falar sobre como nos sentimos, o quanto dói, como dói, e nos preocupamos sobre o significado da doença para nossas vidas. De algum modo, nós empreendemos uma conversação interna sobre nosso adoecer, mas tal conversação não é um monólogo; estabelece-se um diálogo com outros imaginários que se baseia em um repertório de experiências pregressas ou de intuições e percepções sobre o adoecer, que estabelecem provisoriamente recursos para a compreensão e o lido com o adoecer. Acredito que isto ocorre mesmo com crianças muito pequenas, naturalmente com recheios muito mais fantasiosos. Ao procurar um profissional para ampliar a percepção– e procurar resolver –a doença, os pacientes de alguma forma buscar exteriorizar esta conversação interna. Mas o que acontece neste diálogo?

Os médicos normalmente nos pedem para descrever como nos sentimos. "Este desconforto parece mais como uma dor em aperto ou em pontada?”. “Esta tontura é como se o mundo estivesse rodando?”. O que me parece interessante na articulação com o profissional é que o diálogo tende a converter um “sentimento” (o que eu estou sentindo) para uma “denominação” (como eu evocaria este sentimento). A nomeação de um sentimento é expressiva ao invés de designativa. Para expressar um sentimento, é preciso muitas vezes recorrer a evocação. Uma vez que tenhamos respondido à pergunta inicial (dor aguda ou dor surda?), mais perguntas sobrevirão para que o médico tente afinar o diferencial. Nosso modelo de anamnese clínica tende a buscar uma expressão nominativa dos sentimentos. Em resposta a "conte-me mais sobre sua dor", uma descrição mais detalhada (até onde isso é possível) tende a ajudar menos do que exemplos, analogias ou metáforas; "é algo como ...", "isso me lembra de .... ". A conversação médico-paciente, para lembrar Ozick, está encharcada de metáforas.



Observem um trecho de “O Carteiro e o Poeta” (Il postino, Itália, 1994), baseado no livro Ardiente Paciencia de Antonio Skármeta. O filme apresenta a poesia como protagonista da história de uma amizade, em princípio, improvável, entre o grande poeta chileno Pablo Neruda e o carteiro Mario. Por razões políticas, Neruda (interpretado por Phillip Noiret) se exila em uma ilha no sul da Itália. Mário (Massimo Troisi), filho de um pescador, mas que não quer seguir a profissão do pai, é contratado como carteiro, encarregado de cuidar exclusivamente da correspondência do poeta. Aos poucos, Mário consegue se aproximar de Neruda, e as barreiras entre os dois caem e dão lugar a uma troca de sentimentos e descobertas. Quando se descobre apaixonado pela bela Beatrice Russo, Mario pede ajuda a Neruda para conquistar a amada com poesia. É quando descobre o significado de “metáfora” e aprende a expressar seus sentimentos por Beatrice. Ele aprende que, através da observação das realidades exteriores, pode expressar o que está em seu interior. A primeira coisa que diz a Beatrice é “seu sorriso é como as asas de uma borboleta”. Mário demonstra profunda sensibilidade e, em determinado momento, lança uma questão que faz o próprio Neruda pedir um tempo para pensar: “Todas as coisas no mundo têm outra coisa que é sua metáfora?”.

Expressar-se cria rapport. Depois de ter falado, eu não estou mais sozinho, eu estou participando de uma conversa com outras pessoas visando dar sentido ao que me aflige. A minha experiência não é mais só minha, mas agora é a nossa experiência. A linguagem cria um ponto de vista compartilhado a partir do qual podemos ver as coisas juntos.

Doutor, estou sentindo uma rima terrível” – é assim que Paulo Leminski, poeta curitibano abre seu conto “Sintomas”, no livro de coletâneas Gozo Fabuloso (2004, DBA). Como já era nítido em sua obra mais conhecida, a poesia, aqui Leminski abusa dos jogos de palavra – um abusar no sentido positivo, de bastante uso de um recurso que ele domina muito bem. Parece, na realidade, aquele sujeito que faz malabarismo como se fosse a coisa mais simples do mundo, e que quando você tenta fazer igual acaba se dando mal. Dá para perceber isso como quando o médico pede para ver a língua do paciente, que acaba respondendo: “O senhor não leve a mal, mas é uma língua apenas portuguesa. Pouca gente no mundo já viu uma língua como essa.“. Ele cria uma situação de humor sem ser histérico, é aquele jeito gostoso de achar graça. O jogo de perguntas e respostas é rápido, afiado e muito, muito bom.

- É, é mais grave do que eu pensava.
- Vou morrer?
- Um dia vai. Mas antes vais ser pior. O senhor pode ficar famoso.
- Pra sempre?
- Não, quando é para sempre a gente chama glória. A fama passa.

As relações entre médicos e pacientes não são inventos de novo, mas (como acontece com as relações em geral) existem dentro de um contexto de compreensão compartilhada sobre que "fundamentos " tais relações se dão. E esses entendimentos compartilhados são revivificados e reafirmados (ou revistos) no diálogo constituído pelos encontros terapêuticos. Compreender a dinâmica da expressão da linguagem do paciente é, finalmente, compreender o sentido de sua própria expressão como terapeuta – e a próprio sentido da profissão. Diz Taylor:

A manutenção destes diferentes fundamentos requer algum grau de entendimento comum por parte dos participantes potenciais (…); o entendimento comum é provocado e mantido por meio da linguagem. (…) Isso não significa que não exista um entendimento comum, tácito, entre as pessoas. Mas não tal entendimento não é necessariamente intersticial. Ele existe dentro de um framework sobre o que é expresso. Sem linguagem, ao final das contas, não poderíamos ter o que descrevemos como entendimento comum (Taylor , 1985 , 272).

Nietzsche chamou isto de Sittlichkeit der Sitte - o caráter personalizado da moralidade. Vivemos dentro de padrões recebidos de nossas experiências com o mundo – mediadas pela linguagem, e que estabelecem parâmetros pelos quais interpretamos – e expressamos – nossos sentimentos. Em relação às nossas doenças, tais parâmetros não são, no entanto , ao contrário do ponto de vista de Nietzsche, necessariamente sufocantes e restritivos. Como pacientes, a percepção – e a expressão – da enfermidade normalmente permanece válida (embora sujeita a revisão) até o momento em que é dialogada com a experiência profissional, e com sua interpretação. Até então, porque passaram pelos testes do tempo e da experiência, nossas percepções do adoecer são fruto de um dialogo interno que configura nossa descrição – via linguagem – da enfermidade. Entretanto, os médicos são distinguidos acima de tudo pela sua capacidade de enxergar além da história do paciente para as complexas redes de conhecimentos médicos – as redes de possibilidades diagnósticas - pelos quais doenças são consideradas reconhecíveis. Hipervalorizar esta capacidade, tal como a formação médica tende a fazer, tem duas consequências perniciosas: a desvalorização da experiência do doente (e do médico) e a transformação do corpo do doente (e, muitas vezes, do próprio doente) em  um objeto aos olhos do médico. A “ciência” médica prospera em definir sua relação sujeito/médico-objeto/paciente e cultiva a consciência monológica, que tem como objetivo conhecer os objetos de seu estudo; a Medicina tende a considerar suspeitas todas as coisas subjetivas. Ao contrário, a “prática” médica é experiencial, relacional, e hermenêutica por natureza.

Explorar os limites da experiência da relação médico-paciente é, ao final das contas, redescobrir também significados intrínsecos da linguagem entre estes dois participantes de um processo terapêutico, e resvalam significantes para os dois lados: o paciente, que encontra no médico o ser dialógico que interpreta sua percepção da enfermidade, em busca do alívio tão requerido para sua dor; e o médico, que como diz Broyard, reencontra-se com o significado de sua própria profissão.

Ozick, C. 1991. Metaphor and memory. New York: Vintage Books.
Taylor, C. 1985. Human agency and language. Cambridge, MA: Harvard University Press.


Prof. Henrique Sá - Vice-Reitor de Graduação da UNIFOR
Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (1992), Residência Médica em Pediatria (Hospital Walter Cantídio, UFC, 1995) e mestrado em Health Professions Education (MHPE) - University Of Illinois At Chicago (2001). Atualmente é Professor Assistente da Universidade de Fortaleza onde atua como Vice-Reitor de Ensino de Graduação. Foi Coordenador de Planejamento e Avaliação do Curso de Medicina e membro da Assessoria Pedagógica do Centro de Ciências da Saúde entre 2004-2008. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Pediatria e Desenvolvimento Infantil, e na área de Educação para as Profissões da Saúde/Educação Médica, atuando principalmente nos seguintes temas: aprendizagem baseada em problemas, problem-based learning, educaçâo medica, avaliação de estudantes e programas educacionais, desenho de currículos e, no campo da pediatria, Clínica Pediátrica e Desenvolvimento Infantil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário